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Nós somos os propositores

RELATO - Curso Introdutório à Formação Contínua - Projeto Educativo da exposição Arte à Primeira Vista realizado em janeiro de 2017.

Nós somos os propositores: nós somos o molde, cabe a você soprar dentro dele o sentido da nossa existência.

Nós somos os propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não existimos. Estamos à sua mercê.

Nós somos os propositores: enterramos a obra de arte como tal e chamamos você para que o pensamento viva através de sua ação.

Nós somos os propositores: não lhe propomos nem o passado nem o futuro, mas o agora.

(Lygia Clark)



Nós somos os propositores, escreve Lygia Clark em 1968. No texto a artista propõe uma nova relação entre o objeto de arte e os participantes que, articulada a outras propostas da mesma época, vai alterar profundamente o processo da artista e também as possibilidades relacionais na arte brasileira. Essa ideia foi também o ponto de partida para elaboração do curso introdutório à formação contínua, elaborado com a Anny Lima para o projeto educativo da exposição Arte à Primeira Vista. A proposta do curso foi construída em diálogo com o João Doescher, da programação da unidade Sesc Jundiaí.


Além disso, a proposição como ponto de partida se relacionou à proposta curatorial de Renata Sant’Anna e Valquíria Prates, que assume um interesse pelos processos e universos de criação dos artistas contemporâneos expostos e também pelos primeiros contatos dos públicos com a arte contemporânea. Desdobrando-se sobre esse interesse a curadoria propõe os dispositivos-ateliês, espaços e materiais para experimentações abertas que podem se aproximar ou distanciar dos universos criativos dos artistas, assumindo dinâmicas próprias.


Como os processos de mediação desenvolvidos com os públicos se inserem nessas possibilidades de proposição, participação, experimentação, reflexão? Quais as possibilidades de trabalho educativo a partir do reconhecimento de um contexto expositivo que se assume também como propositor? Entre as inúmeras possibilidades de resposta a essas questões estava a importância da equipe se entender, desde o curso introdutório, como mediadores artísticos de processos criação com os públicos naquele tempo/espaço da exposição e partir das materialidades e ideias que se encontram ali.


Desse delineamento do curso partiram propostas que se endereçavam às possibilidades da mediação artística e ao conhecimento dos conteúdos vinculados à curadoria, mas também convites a pensar fazendo ou fazer pensando... para que o pensamento viva através da ação, como diria Lygia.


Nesse sentido, quando começamos a desenhar esse curso reconhecemos a importância de caminhar entre os conteúdos e a prática artística, estimulando que essa dinâmica se estendesse ao trabalho com a exposição. E os mediadores pudessem se reconhecer como sujeitos abertos que provocassem os públicos para estabelecer relações participativas com os trabalhos que integram a exposição e os dispositivos-ateliês criados pelas.


Outro ponto de partida para a proposta do curso introdutório foi a importância da mediação de leitura como referência para o trabalho com os livros da coleção Arte à Primeira Vista. Percebendo os livros da coleção como parte da exposição, o nosso desejo, compartilhado com a equipe do Sesc Jundiaí que conduziu o projeto e pela curadoras, que são também autoras da coleção, era que os livros fossem acessados como outra dimensão do espaço expositivo, compreendidos nas minúcias desse objeto-linguagem-espaço.



Contínuos


A imersão inicial, que chamamos curso introdutório à formação continua, se refere a uma metodologia e à percepção do trabalho com projetos educativos em centros culturais. Refere-se à metodologia por entender todo o período de realização daquele projeto educativo como um processo de formação, que se dá de diversas formas – na prática reflexiva sobre o trabalho desenvolvido, nas trocas cotidianas com os públicos, na elaboração de estratégias para a mediação, na produção de relatos e relatórios escritos, a partir da leitura e discussão de textos e imagens, da pesquisa, do debate com a equipe, docentes, entre outros. E se refere à percepção por chamar a atenção de todos os envolvidos para esse processo formativo do projeto educativo em si, construído processualmente por todos.


Além disso, a percepção de que o curso introduz a formação contínua nos faz compreender que é o primeiro ponto das linhas traçadas pela equipe de forma coletiva ou individual. Pensando sobre os desdobramentos que o curso deve ter durante a exposição, nele está também contida uma responsabilidade de chamar a atenção para aqueles temas mais importantes ou latentes para aquele processo específico, e essa curadoria de temática considera a proposta da exposição em si, as demandas do local e contexto onde está a exposição, nossas experiências com projetos anteriores e o presente histórico em que vivemos.





Mediações


O curso introdutório para a exposição Arte à Primeira Vista iniciou com o acolhimento aos participantes (estagiários, supervisores e educadoras), e incluiu um primeiro reconhecimento de todos os envolvidos, a apresentação inicial da exposição e do programa do curso que se seguiria nos próximos dias.


Nesse primeiro dia ocorreu uma conversa com a Kelly Teixeira (Sesc SP – GEAVT) que apresentou a reflexão institucional sobre mediação cultural e educação não formal. Os participantes foram introduzidos ao “estado da arte” dessas reflexões e construções na instituição desde 2013 e, especialmente, sobre a articulação de suas ações com os públicos com referência na prática de educação não formal.


Seguindo a programação, no segundo dia do curso, convidamos a Mayra Oi para abordar mediação de leitura, mediação cultural e arte contemporânea. Iniciando a conversa a propósito das possibilidades e práticas educativas desenvolvidas no contexto dos centros culturais, espaços dedicados à leitura e exposições temporárias. Sua proposta trouxe também ideias ampliadas sobre a mediação de leitura como leitura de mundo, com referência em Paulo Freire, e dos signos que estão no mundo, a partir de Alberto Manguel:

“...o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o céu – todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos.”


Para depois retomar a materialidade do livro e mediar com o grupo as nuances entre forma e conteúdo criadas ou apropriadas na coleção Arte à Primeira Vista.



À primeira vista


No terceiro e quarto dias do curso começamos a introduzir e refletir sobre os trabalhos dos artistas que integram a exposição. A proposta foi apresentar algumas obras e pensamentos dos artistas ou vinculados ao seu contexto de produção para que o grupo se aproximasse desses universos criativos. E iniciamos também algumas práticas e experimentos que dialogavam com essas poéticas e com o convite da curadoria para contatos, vivências, experiências à primeira vista.


Um desses convites foi uma ação de respiração imaginativa realizada com o grupo. A respiração orientava os participantes para um trajeto sobre as relações tempo-corpo-espaço na infância e também as experiências que identificavam com o fazer artístico. Desse trajeto proposto os participantes registraram algumas memórias: pescar folhas recolhidas num pote de sorvete; aprender com a avó um mesmo desenho que já persiste na família há três gerações; brincar e decorar espaços na época das festas juninas e no natal; o contato com materiais quando a rua era quintal; o prazer de se cobrir de glitter nas aulas de arte; o ato de tentar alcançar as coisas em casa com o corpo de criança; a experiência estética com os jogos de vídeo game; o distanciamento com a arte na escola; invenções e brincadeiras com objetos cotidianos; fazer pipa; subir no telhado da casa para desenhar, escrever e imaginar.


A prática também esteve dirigida a sensibilização do grupo para a percepção espaço-temporal, vinculada ao trabalho dos artistas Geraldo de Barros e Lygia Clark, abordados nesse dia. Os participantes também experimentaram a obra Pedra e Ar, de Lygia Clark e desdobraram a obra em exercícios de respiração até que todo grupo terminasse respirando junto, num mesmo ritmo. A mesma articulação entre abordagem teórica e experimentação prática esteve presente no dia seguinte, dedicado aos universos de Mira Schendel e Regina Silveira, que culminou numa investigação fotográfica dos espaços externos e internos do Sesc Jundiaí.



Arte e infância


A relação com a infância que atravessa o projeto Arte à Primeira Vista se desdobrou em diversas possibilidades no encontro, desenvolvido por Valéria Prates Gobato, sobre arte contemporânea e infância. O diálogo, que abordou também a participação na arte contemporânea e aspectos históricos culturais sobre infância, provocou a equipe a pensar sobre as potencialidades criativas da criança:

A criança é um ser curioso, aberto a descobertas, explorador, que investiga, pesquisa, elabora hipóteses, experimenta, se apropria, atribui novos significados e novos jeitos de fazer e usar a materiais e objetos, está aberto a várias interpretações, está presente e participa por inteiro das situações propostas, experimentando-a com todo seu corpo.


A ação com a Valéria também incluiu uma introdução sobre o artista Frans Krajcberg, que se abriu em uma prática de exploração poética no Jardim Botânico a partir do livro Como ser um explorador do mundo, de Keri Smith:

1. Sempre esteja olhando (veja o chão embaixo de seus pés)

2. Considere tudo vivo e animado

3. Tudo é interessante, olhe de perto.

4. Altere seu curso frequentemente

5. Observe por longa duração (e curta também)

6. Perceba as histórias que estão acontecendo ao seu redor

7. Perceba padrões, faça conexões

8. Documente suas descobertas (notas de campo) de diferentes maneiras

9. Incorpore imprevisibilidade

10. Observe o movimento

11. Crie um diálogo pessoal com seu meio. Fale com ele

12. Rastreie a origem das coisas

13. Use todos os seus sentidos em suas investigações


A experimentação e coleta de flores e folhas secas, pedras, galhos e outros elementos naturais encontrados no local alimentou um dispositivo-ateliê da exposição.



Aqui estamos


Desde o início do curso nos espaços de pesquisa e formação específica com as educadoras formadas e os supervisores se propôs o desenvolvimento de duas propostas de oficina, a serem trabalhadas com o grupo de estagiários na segunda semana do curso. Esse momento que os supervisores e educadores formados propõem possibilidades de trabalho com a equipe é interessante para o grupo assimilar que o pensamento e prática educativa são compartilhados por todos os profissionais envolvidos no trabalho.


Considerando os interesses e percepções dos supervisores e das educadoras sobre o grupo de estagiários, a dinâmica do curso introdutório e a exposição as oficinas criadas abordaram mediação e experiências de impressão gráfica.


A oficina sobre mediação e os modos de desenvolver uma visita foi proposta pelos supervisores, que convidaram os estagiários para elaborar possibilidades de acolhimento, desenvolvimento e encerramento de visitas, a partir dos artistas e abrangências da exposição. As propostas criadas foram apresentadas para todo o grupo e debatidas. Foi um momento importante para que todos começassem a reconhecer as possibilidades do trabalho e as referências da equipe.


No mesmo dia ocorreu outra oficina, desenvolvida pelas educadoras, que apresentou e propôs breves experiências com algumas técnicas de impressão gráfica (frotagem, monotipia, xilogravura e possibilidades da gravação e impressão em metal). As técnicas foram expostas pelas educadoras e os supervisores e em seguida os estagiários experimentaram algumas possibilidades de gravação e impressão. Esse segundo momento do dia alimentou as possibilidades e percepções sobre as poéticas e práticas que poderiam acontecer durante a exposição, colaborou para compreensão técnica dos trabalhos da artista Mira Schendel e significou também um momento importante de colaboração entre todos para organizar do ateliê pós-atividade.



Eu, outro, nós


No dia 10 de janeiro Anny Lima dialogou com grupo a partir da ideia de mediação como obra aberta. Essa ideia se associa com o pensamento de Umberto Eco sobre a relação entre os leitores e as obras literárias para articular possibilidades de trabalho com os públicos a partir de diálogos verbais e não verbais horizontais e co-criativos e da construção de espaços simbólicos de ressignificação das exposições e obras de arte.


Dando continuidade à reflexão sobre as possibilidades de encontro com os públicos, a mediadora abordou também as possibilidades e estratégias de mediação com os visitantes considerando as tipologias de conteúdos factual, procedimental e atitudinal. Questões sobre as múltiplas possibilidades e olhares dos públicos no contato com a arte, as diferentes percepções dos espaços expositivos, as diversas formas de diálogo.


A conversa com grupo também esteve permeada pela leitura mediada de imagens e conteúdos sobre arte e fruição que circulam na nossa cultura visual, como trechos do episódio Não há tempo para o amor (Charlie Brown), no qual as personagens visitam um supermercado pensando que é um museu de arte moderna ou contemporânea e uma cena Play it again (Woody Allen), em que uma mulher faz a leitura de um quadro do pintor Jackson Pollock projetando seu estado emocional.



Leo Não Consegue Mudar o Mundo?


No dia 11 de janeiro Luis Soares dialogou com o grupo sobre vulnerabilidade social e ações de acessibilidade articulada à mediação cultural e educação não formal e introduziu o trabalho do artista Leonilson. Luis começou a conversa com o grupo pedindo que cada um falasse sobre uma situação na qual se sentiam vulneráveis. Em seguida, a partir da percepção de fotos de Stefan Werc, que registra pessoas vivendo em um cemitério em Manila, e da obra Linha de 250 cm tatuada sobre 6 pessoas remuneradas (1999) de Santiago Serra na qual seis jovens desempregados de Havana Velha foram contratados por $ 30 para que consentissem em ser tatuados, o mediador mapeou com o grupo as possíveis vulnerabilidade sociais. A conversa também problematizou a vulnerabilidade social de pessoas transgênero e outras situações nas quais indivíduos têm acesso restrito aos direitos sociais.


Considerando a restrição do acesso aos direitos sociais na contemporaneidade o mediador trouxe referências para pensar esses acessos nos contextos urbanos abordando questões como mobilidade, concentração de empregos e a oferta de espaços de produção e fruição de bens culturais. Em seguida apresentou um breve histórico sobre os programas de acessibilidade nos espaços culturais e os projetos que desenvolve atualmente no Instituto Tomie Ohtake, abordando as possibilidades horizontais e participativas de trabalho com os públicos.


O encontro com Luis também propôs uma introdução ao artista Leonilson, que ocorreu a partir de trechos de filmes e documentários sobre o artista e da leitura de algumas obras. Estabelecendo pontos de contato entre o trabalho do artista e os diálogos sobre acessibilidade e vulnerabilidade social o mediador partiu do título da obra Leo Não Consegue Mudar o Mundo para introduzir o universo histórico, social e poético do artista.



Primeiras experimentações


No último dia do curso introdutório a equipe conversou e visitou a exposição com as curadoras, Renata Sant’Anna e Valquíria Prates, e a Vanessa Clark, neta da artista Lygia Clark. Foram momentos para se aproximar das ideias e desafios que circunscreveram a exposição e a coleção de livros Arte à Primeira Vista durante esses anos de projeto e também para experimentar os dispositivos-ateliês e as obras.


Nos dias anteriores a equipe já havia entrado no espaço expositivo totalmente vazio e depois com algumas obras bidimensionais nas paredes. Esses primeiros movimentos de reconhecimento do espaço e também todo acúmulo diálogos, conteúdos e experiências realizadas com a equipe anteriormente colaborou para que todos se sentissem muito à vontade para experimentar as propostas dos dispositivos criados pelas curadoras e as obras dos artistas.


Acolhidos por Vanessa começaram pelo trabalho Rede de Elástico (1974) de Lygia Clark aprendendo a dar os nós que estruturam a rede e escutando histórias sobre a relação da artista com a experimentação e algumas personagens envolvidas nesses processos. Depois o grupo manipulou uma réplica da obra Bichos, que durante a exposição não poderia ser tocada pelos visitantes.


A experimentação continuou, com a mediação das curadoras, nos dispositivos-ateliês que dialogam com o universo poético dos artistas da exposição, mas dando ênfase na autonomia dessas propostas em relação às obras as infinitas possibilidades de desdobramentos com os públicos. O grupo mergulhou nos espaços e propostas ora como um corpo coletivo, ora a partir de desejos individuais, com abertura e curiosidade.

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